1.7.07

Escroques, trapaças e jornalistas meliantes (final)

"Plec! Plec! Bum!"

A fotografia acima, que o livro do Elio Gaspari credita à Agência JB, retrata o capitão Lamarca em fins de 1968, dando posadas aulas de tiro às funcionárias do bradesco no estande do 4o. Regimento de Infantaria, em Quitaúna (SP). Antes, portanto, da "deserção", em janeiro de 1969 - sempre segundo o autorizado Gaspari.

(Como sempre) por acaso, ocorreu-me notar que a VEDE, numa edição recente de cujo número no quiero acordarme, ilustra com foto muito similar um textículo não assinado que, na cara dura, intitula-se "Bolsa-Terrorismo" para começar a meter o pau na promoção da viúva do ex-capitão Lamarca até a patente (leia-se pensão) de viúva de ex-coronel (não entremos, por ora, no mérito dessa candente questão previdenciária).

Falta-me a reprodução da fotografia da revista (sic) por não ter conseguido crackear uma senha de acesso ao sítio da April, Inc., mas garanto-vos (os são-tomés podem correr à ante-sala do consultório do dentista para comprovar) que, naquele número nada exemplar, VEDE elege a seguinte moçoila para aparecer fazendo mira com uma ameaçadora arma longa, sempre sob as atentas vistas do espigo Lamarca:

Em VEDE, esta simpática educanda, durante sua inesquecível primeira instrução de tiro, aparece vestindo a mesma saia listradinha nova! (trabalhará também no bradesco? Sou um romântico incurável)

O raro leitor concordará, confiante, de que se está falando de fotos produzidas nos mesmos press sessions days, no mesmo aloucado 1968, num mesmo quartel do Exército no interior (ou quase) de São Paulo?

Pues. Sucede que a legenda da ilustração da VEDE, posso fiar a barba, refere-se a algo como "Lamarca depois do Exército" ou "Lamarca depois de se tornar um terrorista frio e sanguinário" - depois, concluo, de janeiro de 1969.

Blind chance? Cochilo da revisão? Ou estamos apenas patinando no campo barthesiano da significância? Pouco provável: no mesmo exemplar da revista (sic!), apenas algumas páginas depois da anônima matéria, o proverbial Reynald Hollywood (© M. de Verdepascoli), assustadiço com a maré vermelha que vingativamente lhe entupira os bofes da caixa-postal, perpetra um artigo (sic!!!) em que se igualam os (então) ocupantes da reitoria - convenhamos, no máximo larápios ou toxicômanos - ora aos traficantes do Complexo do Alemão, ora à Al-Qaida.

Batata: após a recepção escalonada dessas palavras de ordem, se tiver prestado mínima atenção à semiologia exotérica da trapaça (operada até mesmo em nível subliminar, não duvidemos de nada), o leitor médio da VEDE - que, como se sabe, só lê VEDE e era (é, e sempre será) favorável à incursão do Batalhão de Choque - estará preparado para navegar no brilhante insight: "Estudantes de saias listradinhas têm sido instruídas por subversivos covardes e impiedosos a fazer fogo contra a sociedade judaico-cristã-ocidental desde a longínqua época da Revolução (sic!!!!!!!!!!) - e agora com o dinheiro dos meus impostos, meu Deus!"
Esforçando-se durante o breve intervalo entre a Novela e o Jornal Nacional, o mesmo leitor médio concluirá que os burgueses revoltados e mimados da USP não passam todos, como sempre, de testas-de-ferro de terroristas/ bolsistas provenientes de Potências Estrangeiras (Moscou, Havana, Caracas, Pyongyang, Pindamonhangaba etc.) interessadas em instalar no torrão inzoneiro uma ditadura comunista.

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Segundo esse bricolage ideológico chulé (mais uma), a mefítica subversão da Universidade é obra de mafaldinhas e barbudinhos vagabundos que, armados até os dentes com laptops roubados e gasolina e fuzis contrabandeados da Chavezuela, merecem sofrer uma (re)ação "fulminante" por parte do meu, do seu, do nosso Estado; não como irrisória instrução militar para funcionárias da reitoria ou do bradesco - aliás e de quebra convenientemente poupado na estória toda -, mas, talvez, why not?, à moda da Operação Pajussara, naquela saudosa primavera de 1971...

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Diz Ernesto Sabato, pela boca do sempre lúcido Fernando Vidal Olmos, que quando se combate um inimigo por longo tempo acaba-se ficando parecido com ele. Assim, e só por via das dúvidas, cessam doravante as referências malsãs ao horrível hebdomadário.

Mas, como na ópera, ainda dá tempo de cantar a conclusão moral da farsa toda: num mundo em que o mesmo bradesco patrocina a Dança dos Famosos (ora reciclada, literalmente, como Circo), as laboriosas fotomontagens stalinistas - precursoras do photoshop e, portanto, do pioneiro ensaio da Hortência na Playboy - há muito já não são mais necessárias;
basta a mais fácil e descarada mentira inepta.

8 comentários:

ciça disse...

é como dizem os professores da física, naquela carta: "a universidade, como todos sabem, não é uma democracia".

Anônimo disse...

OK. Concordo que houve trapaça. Concordo que é um exagero grosseiro (para dizer o mínimo) meter no mesmo saco os guerrilheiros do Araguaia, os ocupantes da reitoria e os terroristas islâmicos. Mas isso não nos deve fazer pensar que Lamarca tinha a alma cândida de um florista, que era um homem pacífico que se viu obrigado a perpetrar horrores. Ele matou gente, sim, e com crueldade. Aliás, acho que esse critério deveria ser levado em conta pelas comissões de anistia: a família daquele que matou outras pessoas não leva um tostão.

Érico disse...

Com efeito, Lamarca matou bem. Será que isso aparece no filme homônimo, com Paulo Betti? Não o vi e dele não gostei.

júlia disse...

não pode matar não pode roubar não pode nadar pelado não pode ser democracia não pode comer gordura não pode dormir em cima da cama não pode dançar fora do escuro não pode dançar não pode ouvir música não pode ser professor de física não pode ser jornalista da veja não pode comentar blogue durante o trabalho!

é bom ouvir voz de gente pessoauuu

flogisto_calavera disse...

seria um belo gesto da família lamarca distribuir a pensão entre os familiares das vítimas. calaria a boca de muita gente.
aliás, não acompanhei o caso, não li nada na imprensa, mas acho meio estranha essa pensão. se o cara desertou, não é mais militar, abriu mão desse tipo de direito. parece provocação, não?

Érico disse...

1. Não acho que desertar daquilo que se auto-intitulava Exército Brasileiro em janeiro de 1969 fosse algo exatamente imoral ou criminoso ou passível de punição.
2. Por que as famílias dos homens mortos por Lamarca não pedem a tal pensão? Que eu saiba, eram eles todos funcionários do Estado. Será que as tais famílias já não são pensionistas? Sinceramente, acho que a Viúva deve dar pra todos.

flogisto_calavera disse...

eu apóio totalmente a deserção, em 1969 e em 2007 e sempre. (isso me lembra: escapei do exército porque menti sobre a minha miopia: dobrei os graus, ninguém conferiu nada. otários). mas com certeza há leis que definem "deserção", assim como há leis que regulam essa pensão. provavelmente, há um cruzamento entre elas (as leis) - ainda que um cruzamento meramente hermenêutico, ou pelo menos uma presunção - em que se determina que o desertor, por não fazer mais parte do exército, não tem direito a receber (ou presume-se que).
e mesmo que as famílias sejam pensionistas, seria um gesto cristão em sua essência (hahaha) doar a indenização. viúva tem que dar, tem que dar.

Érico disse...

Advogados interessados em mamar porcentagens da Viúva foram, afinal, os causadores objetivos da tramóia previdenciária em questão - justamente porque o eterno emaranhado de Leis o permite. Long live!