31.8.07

Carta ao Prof. Kretzschmar

Caro Professor,

Penso que em Corpo de Baile a moderna indeterminação (ou embrejamento, para horror de Gulaberto Gaspar) da linguagem ficcional é efetuada pelo (talvez) mais formidável sistema de referências funcionais já mobilizado na literatura brasileira.

O espaço interno do livro é delimitado pelo aproveitamento (re-arranjo) de tantas e tão minuciosas referências geográfico-empíricas que sua arquitetura não pode, realmente, prestar-se a recobrir a banalidade de um previsível hieróglifo do Caduceu ou, ainda, o Mistério da Pirâmide de Memphis (com o Elvis dentro).

O alegórico, em Corpo de Baile, é tão pouco "interpretável" quanto, digamos, o Parnaso de Andrea Mantegna.

Nesse sentido, não se pode esquecer que as estrelas do Pinhém não são deuses. Elas apenas formam constelações visíveis que Rosa conhecia (pois lia livros de astronomia) e que por ele foram aproveitadas de modo acutíssimo, como também os nomes de fazendeiros constantes nos mapas de Minas da década de 50. Lélio e Lina, ao fugir para o Peixe-Manso, estão também tomando o rumo da constelação de Peixes, mas esse fato não diz nada sobre o "significado profundo" do terceiro poema do livro; antes, indica que Rosa gostava de utilizar todas as referências empírico-funcionais que pudesse (e podia muito), de modo a exercer o mais estrito controle sobre a cenografia das situações narrativas (e essa vontade de tudo querer abarcar parece estar figurada no Côco de Chico Barbós).

Em Corpo de Baile, os deuses e heróis continuam precisando cavalgar diversas léguas, passar os rios pelos vaus e orientar-se pelas estrelas, se viajando de noite; nas estórias de amor, o arruado do Ão (Doralda), a fazenda de dona Vininha (Vênus) e a Samarra (Leonísia) estão localizados ao pé de vertentes de serras que, sempre recobertas por verdes matagais, desenham em seus contrafortes grafismos em "V" semelhantes ao sexo feminino (apud Rosa, num dos Cadernos); o verde das águas do rio Abaeté (Mãe, Glorinha) é também o verde-escuro do vestido de Lina, na fuga do Pinhém. "Nesse mundo, tudo é visível, tudo é concreto, tudo é corpóreo, tudo é material e, concomitantemente, tudo é intensivo, inteligível e artisticamente necessário." (Bakhtin).

A estudada cenografia ficcional de Corpo de Baile, planejada em níveis inéditos de detalhamento, leva, por sua evidente extração científico-naturalista, a Goethe - a quem também muito interessava, de acordo com Bakhtin, a descrição acurada das bacias hidrográficas e das cadeias de montanhas. No começo de Afinidades Eletivas, com efeito, o Capitão visita os domínios do amigo Eduard a fim de logo agrimensá-los, mensurá-los, descrever e apresentar sua superfície aparente: para Bakhtin, o espaço goethiano é regido por uma "necessidade" tão concreta e visível como os afloramentos geológicos.

Essa necessidade histórico-geológica, em Rosa, manifesta-se sobre o tempo t da estória de modo a amorosamente amalgamar descrição e diegese num terceiro composto, tanto mais consistente quanto pleno, comme il faut, de ressonâncias cósmicas: terrae uis. O estudo dos mecanismos desse alegorismo total, Gesamtkunstwerk, precisa fundamentar-se na intrincada intratextualidade dos poemas, e talvez por isso até hoje continue negligenciado pela crítica. (...) Isso ajuda a visualizar, como num mapa, os contornos da rede de relações (simpatias, repulsões) que governa os itinerários no interior do sertão roseano, sem que, para tanto, seja necessário propor uma pouco honrosa ingerência da hermenêutica intertextual (ocultismo, o Brasil, mitologia grega etc.) sobre suas muitas significações possíveis.

Trata-se, claro está, de acionar a máquina do ciclo romanesco e de assisti-la funcionando, apenas reproduzindo seus processos internos. Estes se tornam visíveis na physis do livro através das assinalações dos acidentes e fatos geográficos (o Morro, o rio Urucuia, a constelação do Boieiro etc.), pois estes (pre)figuram, alegoricamente, os caracteres das personagens e seu destino no futuro da leitura. A proposta é determinar a maneira com que a disposição geográfica dos cenários das fazendas, condicionada pelos caprichos da Natur roseana, opera a idéia de uma "orografia cenográfica" (expressão registrada nos Cadernos) que mobiliza todos os poderes do Rosa naturalista e o engenho perverso do Rosa logogrífico.

Essa cenografia das fazendas seria, em alguma medida, homóloga da organização dos membros do corpo alegórico do livro? Isto é, poder-se-ia pensar no espaço cartográfico delimitado pelas principais fazendas de Corpo de Baile como metáfora animada de uma idéia de Totalidade, alegoria cartográfica do Sertão, no-nada?

Estas são as hipóteses, e a desmesura dos cartógrafos do Império, em Borges, é a perfeita imagem da encrenca em que me meti, não acha?

Um abraço,

José Américo.